Angra 3 realmente é um projeto obsoleto

Artigo de Sidney Luiz Rabello, engenheiro da Comissão Nacional de Energia Nuclear com experiência de 30 anos em Segurança de Usinas Nucleares, publicado no Jornal do Brasil em 31 de março de 2010*.

A réplica da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), órgão atualmente responsável pelo licenciamento e fiscalização das aplicações da energia nuclear, não contestou sequer uma linha do artigo intitulado O anacronismo de Angra 3 (JB, 05/02/2010, pág. A11). Tergiversou. Inclusive confirmou que o projeto de Angra 3 é de mais de 30 anos, e, em nenhum momento, discordou de que Angra 3 não inclui em seu projeto requisitos de segurança, decorrentes do acidente de Three Mile Island (TMI). Simplesmente omitiu qualquer menção.

Não poderia ser diferente, pois Angra 3 foi projetada à luz das usinas nucleares alemãs da década de 70 ou início da década de 80. 

O Banco de Dados da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) (www-pub.iaea.org/MTCD/publications/PDF/cnpp2009/countryprofiles/Germany/ Germany2008.htmlpermite verificar as datas de licença de construção, as mais adequadas para servir de referência para o projeto, uma vez que este sempre antecede à construção. A usina de Grafenheinfeld teve licença de construção em 1975 e as mais recentes usinas alemãs Isar 2, Emsland e Neckarwethein 2 (konvoi) tiveram licença de construção em 1982 (pedido de licença em 1980). Portanto, não há na Alemanha nenhuma usina nuclear moderna, de projeto do final do século 20 e início do século 21. Outra evidência é que os critérios de segurança alemães não foram atualizados, são do início da década de 70 e início da década de 80, e não refletem o estado da arte da ciência e tecnologia, segundo relatório do IRRS da Agência Internacional de Energia Atômica de setembro de 2008 e segundo o GRS, órgão alemão para a segurança de reatores.

Uma vez que os critérios de segurança e os projetos das usinas nucleares alemães precederam o acidente de TMI e o amadurecimento internacional dos novos critérios de segurança, logicamente não contemplam os requisitos de segurança pós-TMI.

Os critérios de segurança pós-TMI exigem, entre outras coisas, um novo projeto para o edifício do reator de Angra 3, com requisitos adicionais para a contenção, última barreira contra a liberação de material radioativo (vide seção 3 de The impact of safety standards updating for design purposes in nuclear power plants licensing, INAC2009).

Para resolver o impasse que se estabeleceu com o artigo O anacronismo de Angra 3 e sua réplica, basta que sejam apresentadas as comprovações do atendimento dos critérios pós-TMI, para que qualquer cidadão brasileiro possa fazer a verificação de forma independente. A CNEN, atual autoridade licenciadora brasileira, poderá incluir em sua página da internet os documentos de engenharia comprobatórios. Por que não? Isto é transparência do licenciamento. É trocar as belas palavras da réplica por evidências verificáveis por qualquer um. É hora da democratização do licenciamento e da fiscalização das aplicações da energia nuclear no Brasil. Basta de sigilo, que só permite a existência de desvios, e vamos dar mais um passo na consolidação de uma sociedade aberta e democrática.

Devemos fazer como nos Estados Unidos, tomados em seus bons exemplos, onde a Nuclear Regulatory Commission (NRC), autoridade licenciadora americana, divulga fartamente toda a documentação de licenciamento das usinas nucleares americanas há décadas. Atualmente basta ir à página da NRC na internet (www.nrc.gov) e verificar por exemplo como são atendidos os requisitos pós-TMI pelo EPR da Areva e outras usinas em processo de licenciamento. Pode-se verificar também todo o questionamento técnico da NRC e as modificações de projeto decorrentes. Façam o exercício. Todos ganharão.

A divulgação ampla e irrestrita pode ser complementada pelo posicionamento da AREVA, projetista de Angra 3, a mesma do EPR, sobre o atendimento dos critérios de segurança pós-TMI e pela criação de um comitê internacional, composto de profissionais que participaram na elaboração dos critérios pós-TMI, para rever o projeto de Angra 3 e apresentar um parecer técnico conclusivo.

É difícil depreender as razões de se insistir em um projeto obsoleto. Por que a CNEN não exige que Angra 3 atenda os requisitos de segurança pós-TMI? Por que não transforma em realidade a afirmação da réplica de que o único envolvimento da CNEN é no processo de licenciamento, que consiste em verificar a conformidade do projeto com as normas de segurança?

Uma autoridade licenciadora deve necessariamente fazer cumprir suas atribuições de proteção da população, dos trabalhadores e do meio ambiente, no que diz respeito às aplicações da energia nuclear, e exigir dos requerentes que introduzam no projeto toda a experiência operacional nacional e internacional, de forma a se evitar a ocorrência de acidentes e funcionamentos anormais já vivenciados em outras usinas.

Será bastante oportuna a participação da engenharia nacional, por meio do Clube de Engenharia e do CREA-RJ, no debate sobre Angra 3, uma das mais importantes obras de engenharia do país na atualidade, longe do lobby nuclear e das palavras fáceis, para que seja comprovado por documentos de engenharia se os requisitos de segurança pós-TMI estão incluídos no projeto de Angra 3 e se está garantida a proteção da população, do trabalhadores e do meio ambiente.

* As opiniões do autor não necessariamente refletem as posições da Comissão Nacional de Energia Nuclear.