Fukushima e as usinas de Angra

Artigo publicado no JCNotícias da SBPC e no Jornal do Commercio de 12 de abril de 2012 por Sidney Luiz Rabello, engenheiro da Comissão Nacional de Energia Nuclear com experiência de 30 anos em Segurança de Usinas Nucleares*. 

Fukushima é um marco importante na história da segurança nuclear sob os ângulos técnicos e políticos. Não se deve dar as costas às lições da experiência operacional das usinas nucleares, muito menos ao que foi aprendido em acidentes. O tsunami de Fukushima trouxe novas lições, mas as múltiplas falhas e a inevitabilidade dos acidentes severos são lições antigas de 1979 (TMI), cujas consequências podem ser evitadas. Somente a atuação adequada do órgão regulatório de segurança nuclear, independente da influência de "lobbies" ou de qualquer pressão política, evitará as conseqüências de acidentes do tipo de Fukushima.

Dois tipos de reatores, refrigerados a água leve, são concorrentes e predominantes no mundo: os reatores a água pressurizada (PWRs) e os reatores a água fervente (BWRs). São conceitos diferentes de reatores, mas atingem com eficiência a mesma finalidade: a produção de energia elétrica. Tanto os PWRs quanto os BWRs adotam os mesmos fundamentos de projeto para a segurança. Pode-se dizer que, perante estes fundamentos, não há qualquer diferença entre estes reatores, isto é, eles são igualmente seguros. Portanto, qualquer afirmação contrária implica em uma demonstração nada trivial.

O que se pode comparar são as soluções de Engenharia dadas por uma tecnologia frente à outra. Como é bastante conhecido na Engenharia, são múltiplas as soluções para um mesmo problema ou para um mesmo fundamento de projeto. Como não poderia ser de outra forma, isto também é aplicável para os diferentes tipos de reatores ou para os diferentes projetos de um mesmo tipo de reator, isto é, há várias soluções aceitáveis para se atender os fundamentos de segurança. No entanto, isto não implica, de forma nenhuma, que um reator possa ser mais ou menos seguro que o outro.

O que pode ocorrer é que um projetista não atenda um fundamento de segurança e o órgão regulatório, responsável por garantir a segurança nuclear, não identificou "a tempo" a fragilidade do projeto. 

Tudo isto foi descrito para fundamentar que o acidente de Fukushima não ocorreu devido a fragilidades específicas dos reatores do tipo BWR e que os PWRs não são nem mais nem menos seguros do que os BWRs, refutando algumas alegações propaladas na época do acidente.

A análise do acidente de 2011 nos reatores de Fukushima, do tipo BWR, não deve se restringir apenas a perguntar "por que não foi prevista a intensidade do sismo e do tsunami no projeto das usinas". Deve-se ater principalmente às consequências que decorreram do tsunami e identificar as razões pelas quais elas não foram evitadas e por que não havia recursos físicos, previstos com antecedência e disponíveis no momento o acidente, para impedir a liberação de
material radioativo para o meio ambiente.

A inundação decorrente pelo tsunami provocou falhas múltiplas nos sistemas de segurança, implicando na fusão do núcleo do reator. O metal fundido resultante dissociou a água, gerando grandes quantidades de hidrogênio, que em contato com o oxigênio da atmosfera provocou as explosões espetaculares. Outro aspecto importante do acidente de Fukushima foram os danos ocorridos na piscina de combustível nuclear usado.

Em 1979, concluiu-se que a fusão do núcleo do reator, ocorrida no acidente de Three Mile Island (TMI), um reator PWR, foi ocasionada por falhas múltiplas, tal como em Fukushima, muito embora as causas tivessem origem em evento interno à usina, sem nenhuma relação com sismo ou tsunami. Na época, em função de TMI, concluiu-se também que os fundamentos de segurança estavam incompletos e que deveriam incluir os acidentes severos de fusão do núcleo, independentemente das causas, devido à inevitabilidade das falhas múltiplas.

Não se construíram mais usinas inseguras de projeto da década de 70 e as usinas americanas em operação foram reformadas para se adaptar aos novos fundamentos de segurança. Apesar de o acidente ter ocorrido em um reator do tipo PWR, os novos fundamentos de segurança também foram exigidos para os BWRs. A atitude dos americanos de reforma da regulamentação de segurança e de seus reatores em operação não necessariamente foi seguida por todos os países.

A Agência Internacional de Energia Atômica, em concordância com os países membros, consolidaram em 2000 a inclusão dos acidentes severos em norma de segurança como base de projeto (IAEA-NS-R-1), estendendo a sua obrigatoriedade, pelo menos moral, para o mundo inteiro.

Os reatores dos BWRs e dos PWRs estão instalados no Edifício de Contenção e este edifício está contido dentro do Edifício do Reator, que tem a finalidade de proteção contra eventos externos e de servir de blindagem de radiação. O Edifício de Contenção dos BWRs (Mark I e II) tem atmosfera de nitrogênio para que o hidrogênio gerado em acidentes não exploda em seu interior, danificando-o. Nos PWRs, a atmosfera é normal, rica em oxigênio. São previstos recombinadores de hidrogênio para evitar atingir taxas explosivas.

Quando foram acrescentados nos fundamentos de segurança os acidentes severos, a taxa de geração de hidrogênio multiplicou-se por muitas vezes, resultado da fusão de núcleo que não era considerada no projeto da década de 70, pré-TMI. O projeto dos BWRs se manteve atual, pois a atmosfera de nitrogênio é inerte, indiferente à quantidade de hidrogênio. Nos BWRs de Fukushima, a explosão ocorreu no edifício do reator, externo ao Edifício de
Contenção.

Já os PWRs da década de 70 sem reformas poderão ter a explosão em seu interior, devido à insuficiência dos recombinadores, não sendo improvável a abertura do edifício da contenção (o que não aconteceu em Fukushima), expondo o núcleo fundido ao meio ambiente, de forma semelhante a Chernobyl e gerando uma situação de altíssima gravidade. Pode-se afirmar com certeza que as Contenções dos PWRs da década de 70 não foram projetadas para suportar as consequências de chama e explosão decorrentes das grandes quantidades de hidrogênio geradas nos acidentes severos.

Algumas soluções de engenharia para o "layout" dos PWRs incluíram o depósito de combustível novo e a piscina de combustível usado no interior do Edifício da Contenção. O risco nestas usinas é muito alto, pois a explosão de hidrogênio, além de desestruturar o interior do Edifício da Contenção, causará danos sérios ao depósito e à piscina, implicando em provável acúmulo do núcleo fundido do reator com os combustíveis novo e usado. Em consequência, o acidente severo se amplificará, pois poderá ocorrer criticalidade sem controle fora do reator, de gravidade muito superior.

Cabe destacar que a geração de hidrogênio em larga escala não é o único fenômeno de importância no caso de ocorrência de um acidente severo. A ejeção a alta pressão do núcleo fundido através do vaso do reator, a explosão térmica ou de vapor, de proporções superiores à do hidrogênio, a interação do núcleo fundido com o concreto, a sobrepressurização e a sobretemperatura da Contenção são outros fenômenos decorrentes de acidentes severos, bastante conhecidos após o acidente de Three Mile Island de 1979, que devem ser levados em conta no projeto de segurança de uma usina nova ou em construção ou na reforma das usinas em operação.

Apesar do acidente de Fukushima ser muito noticiado, pouco é comentado sobre as lições aprendidas, que devem ser consideradas pela sua grande importância. Os fenômenos decorrentes de acidentes severos, como a explosão de hidrogênio, são bastante conhecidos desde o acidente de TMI de 1979 e Fukushima vem a confirmar sua importância.

Mesmo considerando a necessidade de maior amadurecimento e informação completa do que ocorreu no interior da usina, já se pode adiantar que Fukushima nos ensinou: (1) que as lições de acidentes, como o de TMI de 1979, não podem ser desprezadas e as modificações de projeto decorrentes não podem ser postergadas impunemente; (2) que o órgão regulatório ou a Agência de Segurança Nuclear deve atuar com independência política e financeira, sem influência da indústria nuclear e das operadoras das usinas, devendo contar com um corpo técnico capacitado, com atualização continuada e treinado para perseguir os objetivos de segurança; (3) que as margens ou folgas de projeto devem ser conhecidas, no que diz respeito aos eventos naturais (reiteração, uma vez que já estava incluído dentre as lições aprendidas em TMI); e (4) que as fontes de energia de emergência sejam instaladas em altura adequada para se evitar que as grandes inundações, aquelas consideradas improváveis, decorrentes de grandes tempestades, por exemplo, possam causar a falência simultânea de todas as fontes.

Dentro do contexto nacional, uma pergunta surgirá com naturalidade: quais são as condições das usinas de Angra, com projeto de segurança da década de 70? É importante que a sociedade esteja bem informada sobre as questões de segurança e que sejam tratadas objetivamente com total transparência, pois é
injustificado o sigilo do tipo de segurança nacional em atividades nucleares civis que envolvam a proteção do indivíduo, do trabalhador, do público e do meio ambiente.

* As opiniões do autor não necessariamente refletem as posições da Comissão Nacional de Energia Nuclear.